quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Exercício Sobre Ela

  Na sincera transparência de uma tentativa de pôr em palavras, pôr em forma um ser ao qual de fato (talvez com a mesma dificuldade que qualquer ser traria) não possui descrição apropriada, prossigo na petulância de construí-la. E talvez deva começar pelo vácuo que arrastou-me este ínfimo prólogo: dar forma.
  Tomarei, a cunho de definição, o escrever como o ato de dar forma, e o faço pois tal definição esboça uma saída para a tentativa que me propus, ou melhor tece um fio condutor que costura de alguma forma a imagem dela, assim como a vejo.
  “Quem é alguém” em si já é uma pergunta que a mim vai além dos limites narrativos, literários, e embora me sinta seduzido a vasculhar os “porquês” ontológicos, bem como as constituições da estética, nesse caso seguirei pelos meandros da simples pretensão literária, pois escrever é dar forma, e essa conveniência semântica à mim é propícia pois não conheço ela assim tal como deveria, não sei da flor se não somente a cor.
  Ela se mostra como um poço de segurança, e a metáfora é útil não só por indicar quantidade; um poço cavado no fundo da terra, cercado por estruturas que conservam seu interior, que protegem seu ser, e ser aqui colocado como ato de poder ser, de estar, sem devir: estruturas que prolongam o instante, tão precioso. E a própria segurança expõem tanto uma atitude de estar seguro de si, num cunho de auto-estima, como junto a analogia de um poço demonstra uma necessidade de assim estar, seguro, pois és instante infinito.
  Ela se mostra singela mas ao mesmo tempo percebo um vendaval de certezas próprias, definições caras a estima, experiências enraizadas que provocam uma força de definição de si, do mundo, de uma vontade de difícil controle, da sociedade complexa que oprime ao cubículo de repartição, da necessidade do ganha pão, da lotação, do trajeto, do pão e do café, da rotina que muitas vezes não rima, sem som.
  Ela tem a certeza de não quer ir e a profunda dúvida se quer ficar. E nesse conflito chocam-se seu próprio ser como instante, como poder ser, estar, e sua vontade nebulosa que tem consciência de que assim gosta de ser, de sofrer, de remoer e escrever para ruminar seu sentimento de querer mais; enquanto nas entrelinhas, no camarim, longe dos palcos, um germe de dúvida desconstrói tudo: do certo faz incerto, e como um vento, assopra. E todas as partes soltas no chão do lamento voltam-se pra dentro, e ela engole.
  E por fim muitas vezes ela solta o que engoliu num pranto, não de tristeza nem de alegria, um pranto que não quer saber pra que veio, quer vir e estar. Pois tal pranto é a forma mais certa de saber quem ela é, de voltar ao mundo sensível, sincero, de pôr os pés no chão, ou na areia molhada de mar sem fim.
  E dela nada sei, escrevo as formas enquanto as formas descrevem um ser.