sábado, 29 de agosto de 2015

Era usual, cândido e infeliz

  Era usual, cândido e infeliz.
  Pedia café expresso sem açúcar enquanto ela encarava descaradamente o garfo torto na toalha verde musgo. Admirava a capacidade tênue que ela tinha em calar-se por mais de quinze minutos quando resolviam sair pra comer algo na vida lá fora, fora da masmorra que era aquele relacionamento dentro daquele apartamento mal decorado, com pelo de gato no tapete felpudo de uma loja de merda de beira de rodovia. Ela sempre deitava nua ali, aquilo nunca fez sentido.
  O drama de se sentir só com um estranho no seu banheiro. Uma solidão assombrada. Ela dormia virada pro oeste, ele o via o sol nascer. Ela comia sucrilhos sorrindo, como se houvesse alegria de manhã no mundo. Aquele tigre laranja esteroide! ele acordava sempre reprimindo a vontade de tudo explodir com aquela felicidade toda antes do metro, do ar, do barulho, da porra toda na vida lá fora. Salvava o café, sempre salvava. O café e o "é de lágrima" que punha pra tocar no mp3 pelo caminho todo.
  "Ela é decente" pensava ele às vezes - "decente a merda, palavra de merda, ela é alguma coisa, uma coisa não, é uma mulher decente depois das nove da noite até às onze, se pá nas sextas..."  todo dia ele escrevia a resenha mental de seu relacionamento no caminho do guichê da Pássaro Marron - teu emprego desolador - escrevia e reescrevia, caçava no fundo da memória aquele afago que lhe fazia bem, aquela lembrança onde a imagem que ele fazia dela ainda era digna de se emoldurar e pregar na parede do hall da casa dos seus vinte e sete anos medíocres como seu vocabulário. Tudo tão medíocre quanto ver tv no domingo com ela fedendo a pipoca de microondas; mas não tão medíocre quando ela sentava no piano exalando um merlot inebriante riscando um Chopin exuberante no teclado que ele comprara naquela viagem pro Paraguai verões passados. "Quando ela veste aquele sapato azul" novamente ele pensava, "aqueles pés nus no piso de madeira, muito além de decente... se pá vou levar um japonês pra ela hoje, é sexta né?... lára lá láa... Maldito trânsito da porra, devia ter pego a magrela... Ééé de lááágrima, que faaço um maar pra navegaar". Deu sete horas, bateu o ponto, "já já acaba" ele dizia suspirando.
  Era usual, cândido mas às vezes feliz.