quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O eterno Niilista

  Por horas a fio prostrado verticalmente no sofá. Um maço grosso de livros se aglomerando na superfície macia do suporte de braço marrom. Uma gota do café escapa da boca e pinga no peito vestido de branco, tal camiseta que de tão velha já não denomino branca e sim "avelharada". Gasta como o humor insosso que permeia. Usada como um costume fisiológico, sentimental. De geração em geração se proliferando, das mãos brutas dos avós à vestimenta de nossos amores, nossos laços sanguíneos, nosso vão viver.
 Um desafeto entre a sórdida criatividade e a relativa liberdade - minha vida. No engodo das palavras de potência, nas ilustres sinagogas do vir-a-ser fatídico: o café desce amargo, mas desperta, clareia. De uma realidade insólita para um inconstante querer, do eu para o você, do ter e não ter. O sono. O contrário da vida. A antítese fácil, resoluta e indolor. Nas beiradas da semi-imoralidade perambula a insanidade ou seria o ser são? O santo? O quente do café baforado pela caneca, o café que esfria que por tal não se pode mais tragar. Eternas borras de café gelado és vós ó moral nebulosa. Pardo reflexo frio. Por horas a fio, por horas a fio...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Mississípi Inc.

 Tudo começa com um enquadramento fechado. As rugas aglomerando-se umas nas outras na fotografia de um pé branco como nata, balançando de lá pra cá e de cá pra lá. Mecânico, como seus joelhos, suas articulações de merda estralando a cada movimento, a dança apoplética de cada dia. Os dias novos de um velho ser.
 Pelo começo subentende-se o fim. Ao se ler "fim" nada há de otimista àquele que não viveu.
 Pulemos para o meio.
 Um primeiro quadro aberto expondo os solavancos de um choro sem esperança. Sua dor só não é maior do que sua patética memória. A perturbação ocupando com tanques o subúrbio subdesenvolvido de suas lembranças. O que comi? Quantos filhos tenho? Alguma vez amei? O cheiro de urina exalando.
 Um meio de vida em contraste com o meio de uma estória? Ou a falta de opção em contraste com a liberdade? A morte e a vida.
 Um corte fechado no rosto em prantos. Respirando fundo. Inspirando esperança, expirando segundos de vida. O tempo pulsando nas largas veias tatuadas na mão pálida, fantasmagórica, incolor.
 Mas ele ainda dança estralando. A vibração sonora que luta pra sair dos auto-falantes cadavéricos ao lado da cama, alegra. O choro cessa. Com a feição boçal ele sorri e depois gargalha, seu humor ainda sobrevive. Pela insensata liberação de endorfina, pela medíocre sensação de alegria sem sentido, ele ri. As notas soltas do teclado vazando pela cera do ouvido. Interferindo na consciência lógica do bom-senso, a música invade. Os dedos negros daquele pianista, que leva nas costas o fardo de sua geração, martela as brancas teclas de um piano sujo num estúdio humilde embrenhado nos confins do Mississípi.  Isso não deveria fazer diferença, mas faz. Ele não deveria morrer, mas vai. Não poderia rir, mas ri. As notas soam, as gargalhadas soam, e tudo ecoa nas ripas de madeira pregadas no teto. Há vida na falta de razão.
 O mesmo enquadramento fechado. As ultimas notas se arrastam pelo ar se dissipando, perdendo a força. Não existem mais. Não são. E na patética memória se alojam, lá elas são. Quais eram seus ideais? Se alguma vez amou? Não há ali traço algum de lembrança, de passado. Somente as três ultimas notas marteladas pelo longo dedo, com sofrer, com prazer, com vida. Um dó, um sol, e mais uma vez um dó. Naquele segundo elas ainda são. Inspirando mais um segundo, expirando sua vida.
 Sem vida há morte. Sem morte há vida?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Da arte de escrever

Se escrever fosse como comer, seriamos obesos romancistas, ou morreríamos de fome.
Sou acima do peso e escrevo. Como mais do que escrevo, e tenho vontade de escrever mais do que fome. Sou estupidamente ilógico. Minha escrita irracional não sacia minha fome de escrita.
"Será que escrevo?" pergunta o gordinho jogado no sofá.
Se alterarmos a forma de linguagem e trazermos a carga social de conteúdo sexual que impele o verbo "comer" sou um completo analfabeto. Fiquemos no ato de ingerir comida para sobreviver.
Fato esse que levanta uma questão válida para tal análise. Eu como por que preciso ou como porque meu desejo está num nível tão extremo desregulado pela televisão que me vende uma vontade antes inexistente com seus hamburguês infláveis e suas guloseimas cancerígenas? Se a resposta for: "Sim! Eu como igual a um porco o tempo todo porque assim me foi condicionado." Então seria possível criar um desejo de escrita que alimentado por constantes insertes de romances russos e extravagancias liberais de língua francesa me tornasse enfim um glutão autor de obras-primas?
"Porra nenhuma." disse o gordo triste jogado no sofá.
Escrever não é comer.
Balzac que me perdoe mas ler inúmeros romances, mastigar dezenas de contos e dissecar antologias não me dão a capacidade de ser um escritor. Deveria mudar para frança, viver em casas noturnos, mendigando aos pés da aristocracia judaica uma refeição ao dia, alimentando meu ser de momentos sórdidos para assim trazer em uma obra toda a prepotência digna de dizer que sim! sou escritor de profissão, como os revolucionários (geniais) sexualistas da era moderna?
"Não sei" lamentou o gordo jogado no sofá.
Nas lamúrias do não escrever datilografo as letras consecutivamente.
Se formam magicamente palavras aleatórias.
Aplico uma pontuação medíocre para me fazer ao menos inteligível.
E se talvez tu poderes ver algum sentido, quem sabe?
E se me abstenho da vontade condicional de comer, ao menos um instante, voltando assim a simples necessidade de comida.
E se nesse tempo fosse livre? E se escrevesse bem? E se completasse cada prólogo que inicio?
E se escrever fosse como comer?
"Nada" disse o gordo sonhador.