terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Mississípi Inc.

 Tudo começa com um enquadramento fechado. As rugas aglomerando-se umas nas outras na fotografia de um pé branco como nata, balançando de lá pra cá e de cá pra lá. Mecânico, como seus joelhos, suas articulações de merda estralando a cada movimento, a dança apoplética de cada dia. Os dias novos de um velho ser.
 Pelo começo subentende-se o fim. Ao se ler "fim" nada há de otimista àquele que não viveu.
 Pulemos para o meio.
 Um primeiro quadro aberto expondo os solavancos de um choro sem esperança. Sua dor só não é maior do que sua patética memória. A perturbação ocupando com tanques o subúrbio subdesenvolvido de suas lembranças. O que comi? Quantos filhos tenho? Alguma vez amei? O cheiro de urina exalando.
 Um meio de vida em contraste com o meio de uma estória? Ou a falta de opção em contraste com a liberdade? A morte e a vida.
 Um corte fechado no rosto em prantos. Respirando fundo. Inspirando esperança, expirando segundos de vida. O tempo pulsando nas largas veias tatuadas na mão pálida, fantasmagórica, incolor.
 Mas ele ainda dança estralando. A vibração sonora que luta pra sair dos auto-falantes cadavéricos ao lado da cama, alegra. O choro cessa. Com a feição boçal ele sorri e depois gargalha, seu humor ainda sobrevive. Pela insensata liberação de endorfina, pela medíocre sensação de alegria sem sentido, ele ri. As notas soltas do teclado vazando pela cera do ouvido. Interferindo na consciência lógica do bom-senso, a música invade. Os dedos negros daquele pianista, que leva nas costas o fardo de sua geração, martela as brancas teclas de um piano sujo num estúdio humilde embrenhado nos confins do Mississípi.  Isso não deveria fazer diferença, mas faz. Ele não deveria morrer, mas vai. Não poderia rir, mas ri. As notas soam, as gargalhadas soam, e tudo ecoa nas ripas de madeira pregadas no teto. Há vida na falta de razão.
 O mesmo enquadramento fechado. As ultimas notas se arrastam pelo ar se dissipando, perdendo a força. Não existem mais. Não são. E na patética memória se alojam, lá elas são. Quais eram seus ideais? Se alguma vez amou? Não há ali traço algum de lembrança, de passado. Somente as três ultimas notas marteladas pelo longo dedo, com sofrer, com prazer, com vida. Um dó, um sol, e mais uma vez um dó. Naquele segundo elas ainda são. Inspirando mais um segundo, expirando sua vida.
 Sem vida há morte. Sem morte há vida?

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