sexta-feira, 6 de maio de 2016

Sobre amor e tempo: um diálogo conjugal entre dois filósofos

  Foi no final do verão; onde os dias prolongavam o vento quente que dispersava-se no horizonte de um outono tardio.
  “Como seria se fosse imutável?” ela sussurrou descabida, não saberia dizer se acordou de um sonho ou se permanecia dormindo.

  Ele ainda dormia.
  Levantar quando o tempo incondicionado se ajusta a lógica de um pensar que não poetiza, e enjaulado geme as cinco, seis, na sorte, dez para as 7 da manhã: vivemos um período onde linhas do tempo vêm antes que o café preto.
  Acordara perdido, suando o resto de calor no pescoço enquanto cobria as pernas que vazaram o edredom que ela consumia desigualmente. O sol abria partículas de espaço na veneziana furada. Não queria levantar, naqueles momentos achava que a vida não valia a pena, ou que a verdadeira vida se dava no dormir, como uma consciência que se personifica em meio a um mar de inconsciente, viver só seria possível precisamente nos instantes entre notar-se acordando enquanto ainda desvencilha-se dos sonhos esfumaçados.
  Nos buracos de luz a mulher ao seu lado sorria. Impessoal como um estranho até se fazer compreensível. Demora-se um tempo para assimilar sentimentos; tudo se arrasta antes do café.
  “E se tudo fosse imutável?” ela insistiu agora que sabia que a escutavam.
  “Imutável?” ele indagou.
  “Sim”, ela reforçou e prosseguiu: “Se tudo fosse permanente. Sereno. Estável. Se o tempo andasse conforme nossas ações, relativos ao espaço não à sobrevivência”.
  “Você diz como Einstein previu, essas merdas?” ele respondeu sorrindo e continuou: “Se tudo fosse imutável, da forma como te amei tempos atrás te amaria agora? Nunca poderia te odiar, chutar seus sapatos pelo chão? Ou sentimentos não entram como ações no espaço da sua tese?”
  Nesse momento ela se levantara, seus seios ainda descobertos tinham marcas da borda frisada do lençol, formando mosaicos, e isso era tudo o que ele conseguia pensar enquanto ela prendia os cabelos castanhos.
  “Não digo em Einstein e essas merdas, digo como se o tempo fosse livre do nosso tempo. Se vivêssemos fora da função quantificante de nossos marcadores de tempo, de nossos relógios que guiam nossos calendários que guiam nossos dias que guiam nossos fins de semana que vivem à sombra do despertador, das dez pras 7 da manhã da segunda-feira” disse ela em um tom sereno, pausadamente, com uma sobriedade incomum.
  “Você não quer acordar?” respondeu ele condescendente. Ela manteve-se em silêncio. Caminhou até a cozinha que, pelo tamanho do apartamento, podia ser vista da cama onde ele permanecia deitado, criando coragem para levantar.
  Botara a água do café no fogo. Seus olhos estáticos desfocavam o fogo azul alaranjado que saia da boca do fogão, como quem olha para algo porque não consegue anular os sentidos, ela olhava mas não queria ver, permanecia imersa em abstrações.
  Ele, já de pé, se escorava na porta da geladeira, predisposto a pensar como ela:
  “Será que tudo é mutável? O sol pergunta pelas horas antes de nascer? O sol se põem em função de nós. O cachorro dorme quando escurece e acorda quando amanhece. Tudo me parece imutável exceto você quando se pergunta pelo sentido do tempo”.
  “Então, tudo parece inquieto porque eu necessito de silêncio?” indagou ela, agora desperta da imersão subjetiva de suas próprias sensações, vestindo uma camiseta branca, com medo do calor do fogão ela coava o café que ficara pronto. Servira um pouco para o dois em xícaras de porcelana, o vapor do café embaçara o óculos que ele havia posto num puro costume pois eram apenas de leitura. Ela bebericava como um beija flor bebe o néctar que lhe servem em suportes de água pendurados nas varandas, tinham o hábito de beber café sem açúcar.
  Por um instante olhavam para o centro da mesa ambos perdidos em seus próprios pensamentos.
  “Você me ama de maneira diferente do que quando nos conhecemos?” ela perguntou insegura com um sorriso comedido.
  “Seguindo o raciocínio que estranhamente construímos, te amo gradativamente, a medida que, indagando sobre a evolução historial do amor num período de tempo específico de nossa vida, o amor só se mostra como amor a medida que o penso; nasce em relação a minha necessidade de pensá-lo, e a manifestação que dá corpo ao amor cresce diametralmente equivalente ao quanto penso sobre ela, pois se em dado momento tudo em mim parece não te amar é porque preciso te amar”.
  Os dois se entreolharam. Ela mantinha um sorriso ingênuo, comedido; ele esboçava um semblante sereno, amoroso.
  “E você acredita nisso?” perguntou ela após matar o resto de café, já gelado, na xícara.
  “Sobre fé nada sei” respondeu ele.
  “Se assim o for, poderíamos voltar para a cama e manter o tempo imutável enquanto nos amaríamos até o sol se pôr para nós enquanto ainda brilhante insensível aquém?”.
  “Se assim o for, sim, poderíamos”.
  Foi no final do verão, onde o despertador despertava sem sentido, às dez para as 7, seguindo o fluxo de uma rotina inconsciente.
  Era sábado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma vida a se desperdiçar

Aquele desconforto, um esboço de sentimento que não se manifesta, permanece inócuo, como uma possibilidade, sempre uma possibilidade.
Uma falta de coerência lhe vem frente a ela, sempre a imagina perto, desfiando com os dedos o cabelo negro, enrolando o que era pra ser liso; ele insiste em sustentar, na tentativa de tornar sólido aquele fel que é imaginá-la: uma vida a se desperdiçar ao lado dela num sofá.
Levanta pra fazer café. Imagina que ela prefere doce, forte, coado a mão jamais cafeteira, uma levianidade digna de um pensar sobre ela.
Sentir-se conjugue só.
Na cena típica onde o buquê de flores levita sob o salão enfestado de vestidos de cetim, ela sempre evita agarrar qualquer coisa, para ele comprometer-se é perder-se, fato que reforça em seu âmago a mesma justificativa que o torna sóbrio perante o fato de estar solteiro aos vinte e sete anos de vida social. Comprometer-se, no momento, somente ao fenômeno de pensá-la.
Na melhor das hipóteses, no melhor dos cenários, ele ira cruzar os passos com os passos de sapatilha errante dela; aquela hipótese onde tudo já é premeditadamente dito, tudo é som, a linguagem pré-humana do olhar figurara os símbolos de um diálogo que já ocorrera, no interior inatingível de ambos.
Não resta mais nada além. Sem linguagem ficamos ambos no olhar vago de um afeto eminente porém amordaçado, vagando na articulação de um amor inconjugável, por isso infértil na concretude do real, mas fértil na imaginação.
Novamente uma vida a se desperdiçar ao lado dela.
Por esses longes todos...
Por um fim.