quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O Nó e o Nada

    Constantemente nosso personagem sentia a necessidade de tornar-se ativo. Em um mundo onde o mais novo acessório da moda é o tempo, não produzir nada produzia em nosso amigo uma sensação vigorosa na boca do estômago, como uma amarga queimação, uma azia psicossomática que outrora em noites chuvosas de domingo quase se disfarçavam de melancolia, mas que na maioria das vezes era somente um sentir-se inútil perante o mundo que acordava cedo para produzir, enquanto o sono a ele batia com o sol querendo acordar, e seu café da manhã era quase almoço.

    A culpa de nada fazer era tão inebriante quanto a serena calma de espírito que fazer nada lhe proporcionava; costumava ele dizer, roubando uma frase por ele mal entendida de Sartre, que aquele nada “possuía substância”: um filósofo das tardes livres, sua avó o descrevia; “um mendigo com moradia” seu vô xingava.

    O fato era que a vida de nosso personagem conduzia-se com um pé só na corda bamba do fazer e não fazer, querendo fazer ao mesmo tempo que não tinha forças para desenvolver; um filósofo de bar, (no intervalo de um dos cursos universitários que o nosso referido começou pra depois terminar) uma vez definiu tal angustia: uma procrastinação ontológica. As más línguas diziam “é vagabundo da sociais”. Todo o falatório não fora capaz de penetrar na pele líquida de nosso personagem que dificilmente abria seu problema para qualquer um, sabe-se do poder da cerveja, mas desse fato poucos sabiam de fato.

    Outrora tentou “ler” tudo à luz de um marxismo arranjado de simpósio de fim de semestre, dizendo que o trabalho no apogeu do capitalismo tardio perdeu a identificação com a praxis formadora do humano num falatório que era bom pra filar umas bolsas da capes, mas que no caso do nosso amigo não suprimiam a ânsia que aquilo tudo causava no cotidiano concreto de relações diversas que era a sua vida e a constante necessidade de manter-se ativo perante ela.

    Numa tarde onde o sol suava às bicas pela camisa de nosso personagem, formando círculos de suor que lhe causavam um desconforto social, surgiu a necessidade de sair “pra rua”, encarar uma fila de banco, aquilo que pra ele era o roteiro mais característico do brasileiro comum, inquietava-o a constatação de que ninguém fizera um retrato do Brasil popular contando a vida do brasileiro na fila do banco, no cinema ou na literatura, mas ele também sabia que deixara pra trás muitos livros e filmes, logo não gastava muito tempo nisso.

    Naquela tarde o bendito pegou uma pastinha azul com os afazeres e entrou no prédio colorido da agência bancária que sempre inicialmente lhe causava um efeito agradável, aquele ar-condicionado trazendo o céu na terra do sol que queima a alma, sensação que dura pouco ao vislumbre do emaranhado de pessoas em pé constatando através do relógio no celular o tanto de tempo desperdiçado naquela fila toda sem fim. Achava ele que se deparar com aquilo tudo era como ver a pessoa amada indo embora lentamente pela porta do que antes era sua dignidade.

    “Ao menos haviam cadeiras” pensou nosso personagem, confortáveis cadeiras de couro batido. A senha dizia O-435, “o de otário” ele sempre pensava jocoso, mas que representava outros serviços além dos outros serviços que para ele eram todos os mesmos serviços de banco.

    Após alguns minutos encarando inconscientemente a tatuagem no pé da mulher no banco da frente, nosso amigo notou uma loira em pé no fundo da agência, onde haviam diversas cadeiras vagas, o que lhe causava estranheza, depois de trinta minutos ninguém suporta ficar em pé no banco, mas a moça dos cabelos loiros ali estava, em pé com aquilo que ele definira como um “coque estranho” preso com um lápis de cor, fato que o fez supor que a moça era professora, de arte quem sabe, talvez comerciante, ou tenha cinco filhos na conta; o fato era que a mulher não se cansava em ficar em pé. Passado um tempo, onde nosso personagem gastara o tempo já perdido no banco olhando os mínimos detalhes que emergiam daquela mulher, notou ele que a moça sempre olhava para fora, e viu que havia um carro esperando-a, com um pouco mais de tempo notou que o carro mantinha-se ligado, o que para ele era uma ilusão tremenda achar que ela sairia a tempo de valer largar o motor frigindo. Mas a situação toda o fez refletir sobre outro prisma acerca daquilo tudo.

    Havia estampado naquele carro a mesma necessidade de não perder tempo. A sensação se mostrava aparentemente idêntica, onde há a mesma vontade de manter-se ativo, de produzir, onde a sensação do motor ligado trazia um alento àquela espera toda da loira do coque exótico dentro do banco. E toda essa reflexão lhe proporcionou aquilo que outrora não sentira a muito tempo, antes desse dilema despertar em nosso personagem aquela melancolia toda perante o nada, onde a inocência da infância expelia toda a noção de comprometimento perante o mundo ativo, uma inocência que para ele morreu quando ele identificou a maturidade em meio as outras coisas que apareceram no vocabulário cotidiano assim que ele completou seus tantos anos que afastavam-no da adolescência.

    Com efeito, toda a cena dentro do banco, construída em seu mundo abstrato de correlações ocasionais, lhe afastava, pela primeira vez em anos, daquela azia psicossomática que descrevemos até então, e ao constatar isso nosso personagem notou que ali onde o mundo se vê obrigado a esperar, forçados a gastar o precioso tempo fazendo nada, o que para a moça do coque e o seu carro ligado causavam um tremendo desconforto perante o tempo de produção perdido, para nosso personagem aquilo tudo não causava desconforto algum, e de quebra se sentia aliviado; ali sentado na poltrona de couro, à anos-luz do O-435, ele sentia-se em paz perante o mundo que lá fora o oprimia. Na agência do banco que forçava o mundo a nada fazer como uma consequência intransponível do fazer algo – pois todos eles necessitavam mediante seus afazeres fazerem nada na fila do banco para que assim pudessem voltar a produzir – o dilema de nosso personagem se diluia em um mero devaneio, a paz voltava a reinar no devir de sua existência, sentia que fazia algo e aquele algo era nada fazer, mas que comungava com o mundo de pessoas ao seu redor, o trazia mais próximo da moça do coque loiro, afinal ele estava fazendo algo, e naqueles preciosos instantes, antes de ser atendido e estar livre para ir para a casa, tudo fazia sentido: nada.

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