A culpa de nada fazer era tão inebriante quanto a serena calma de espírito que fazer nada lhe proporcionava; costumava ele dizer, roubando uma frase por ele mal entendida de Sartre, que aquele nada “possuía substância”: um filósofo das tardes livres, sua avó o descrevia; “um mendigo com moradia” seu vô xingava.
O fato era que a vida de nosso personagem conduzia-se com um pé só na corda bamba do fazer e não fazer, querendo fazer ao mesmo tempo que não tinha forças para desenvolver; um filósofo de bar, (no intervalo de um dos cursos universitários que o nosso referido começou pra depois terminar) uma vez definiu tal angustia: uma procrastinação ontológica. As más línguas diziam “é vagabundo da sociais”. Todo o falatório não fora capaz de penetrar na pele líquida de nosso personagem que dificilmente abria seu problema para qualquer um, sabe-se do poder da cerveja, mas desse fato poucos sabiam de fato.
Outrora tentou “ler” tudo à luz de um marxismo arranjado de simpósio de fim de semestre, dizendo que o trabalho no apogeu do capitalismo tardio perdeu a identificação com a praxis formadora do humano num falatório que era bom pra filar umas bolsas da capes, mas que no caso do nosso amigo não suprimiam a ânsia que aquilo tudo causava no cotidiano concreto de relações diversas que era a sua vida e a constante necessidade de manter-se ativo perante ela.
Numa tarde onde o sol suava às bicas pela camisa de nosso personagem, formando círculos de suor que lhe causavam um desconforto social, surgiu a necessidade de sair “pra rua”, encarar uma fila de banco, aquilo que pra ele era o roteiro mais característico do brasileiro comum, inquietava-o a constatação de que ninguém fizera um retrato do Brasil popular contando a vida do brasileiro na fila do banco, no cinema ou na literatura, mas ele também sabia que deixara pra trás muitos livros e filmes, logo não gastava muito tempo nisso.
Naquela tarde o bendito pegou uma pastinha azul com os afazeres e entrou no prédio colorido da agência bancária que sempre inicialmente lhe causava um efeito agradável, aquele ar-condicionado trazendo o céu na terra do sol que queima a alma, sensação que dura pouco ao vislumbre do emaranhado de pessoas em pé constatando através do relógio no celular o tanto de tempo desperdiçado naquela fila toda sem fim. Achava ele que se deparar com aquilo tudo era como ver a pessoa amada indo embora lentamente pela porta do que antes era sua dignidade.
“Ao menos haviam cadeiras” pensou nosso personagem, confortáveis cadeiras de couro batido. A senha dizia O-435, “o de otário” ele sempre pensava jocoso, mas que representava outros serviços além dos outros serviços que para ele eram todos os mesmos serviços de banco.
Após alguns minutos encarando inconscientemente a tatuagem no pé da mulher no banco da frente, nosso amigo notou uma loira em pé no fundo da agência, onde haviam diversas cadeiras vagas, o que lhe causava estranheza, depois de trinta minutos ninguém suporta ficar em pé no banco, mas a moça dos cabelos loiros ali estava, em pé com aquilo que ele definira como um “coque estranho” preso com um lápis de cor, fato que o fez supor que a moça era professora, de arte quem sabe, talvez comerciante, ou tenha cinco filhos na conta; o fato era que a mulher não se cansava em ficar em pé. Passado um tempo, onde nosso personagem gastara o tempo já perdido no banco olhando os mínimos detalhes que emergiam daquela mulher, notou ele que a moça sempre olhava para fora, e viu que havia um carro esperando-a, com um pouco mais de tempo notou que o carro mantinha-se ligado, o que para ele era uma ilusão tremenda achar que ela sairia a tempo de valer largar o motor frigindo. Mas a situação toda o fez refletir sobre outro prisma acerca daquilo tudo.
Havia estampado naquele carro a mesma necessidade de não perder tempo. A sensação se mostrava aparentemente idêntica, onde há a mesma vontade de manter-se ativo, de produzir, onde a sensação do motor ligado trazia um alento àquela espera toda da loira do coque exótico dentro do banco. E toda essa reflexão lhe proporcionou aquilo que outrora não sentira a muito tempo, antes desse dilema despertar em nosso personagem aquela melancolia toda perante o nada, onde a inocência da infância expelia toda a noção de comprometimento perante o mundo ativo, uma inocência que para ele morreu quando ele identificou a maturidade em meio as outras coisas que apareceram no vocabulário cotidiano assim que ele completou seus tantos anos que afastavam-no da adolescência.
Com efeito, toda a cena dentro do banco, construída em seu mundo abstrato de correlações ocasionais, lhe afastava, pela primeira vez em anos, daquela azia psicossomática que descrevemos até então, e ao constatar isso nosso personagem notou que ali onde o mundo se vê obrigado a esperar, forçados a gastar o precioso tempo fazendo nada, o que para a moça do coque e o seu carro ligado causavam um tremendo desconforto perante o tempo de produção perdido, para nosso personagem aquilo tudo não causava desconforto algum, e de quebra se sentia aliviado; ali sentado na poltrona de couro, à anos-luz do O-435, ele sentia-se em paz perante o mundo que lá fora o oprimia. Na agência do banco que forçava o mundo a nada fazer como uma consequência intransponível do fazer algo – pois todos eles necessitavam mediante seus afazeres fazerem nada na fila do banco para que assim pudessem voltar a produzir – o dilema de nosso personagem se diluia em um mero devaneio, a paz voltava a reinar no devir de sua existência, sentia que fazia algo e aquele algo era nada fazer, mas que comungava com o mundo de pessoas ao seu redor, o trazia mais próximo da moça do coque loiro, afinal ele estava fazendo algo, e naqueles preciosos instantes, antes de ser atendido e estar livre para ir para a casa, tudo fazia sentido: nada.
Top brother!
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